Acúmulo de capital, uma lei natural contemporânea

Larissa C. G. Oliveira
6 min readAug 10, 2023

--

Curiosamente, em meio às leituras rotineiras que, explorando Os Yoga Sutras de Patanjali (2017, p. 100–103), foi possível encontrar, entre outras reflexões e instruções sobre a prática de yoga, como esta se dá em torno de desfixar a mente dos objetos em que os pensamentos se veem capturados e perdidos em trilhas caóticas. Em outro contexto, David Pavón-cuellar aponta, em Além da psicologia indígena: concepções mesoamericanas da subjetividade (2022), como povos originários da mesoamérica veem a doença precisamente na captura do ser, dos pensamentos, de si mesmo, por algo exterior; é quando sua “alma” está presa em outro lugar, sendo lentamente consumida.

Pavón-cuellar fortuitamente explica, entre as minúcias dos avanços coloniais opressivos no território mesoamericano (2022, p. 109–125), como o cristianismo foi uma verdadeira fábrica de almas, separando espírito do corpo quando antes eles eram uma coisa só para os originários, e instaurando a inferioridade pecaminosa do material, do corpo perante o espírito, este que possui uma natureza sagrada digna de julgo por uma entidade abstrata, poderosa e para além do mundo mortal. Natureza sagrada essa resguardada em um plano onde reina um deus masculino, um pai, senhor e soberano, que criou tudo, a começar por outro homem à sua imagem e semelhança para tudo herdar e usufruir como quiser no mundo material (a terra, as plantas, os animais, as mulheres, os outros em geral, etc.) através do trabalho.

Não é novidade como essa fábrica de almas, que visava instaurar a culpa pelos pecados ancestrais, foi um instrumento bastante eficaz de uma casta, o clero, que por muitos séculos se preocupou em gerir pessoas e acumular riquezas no mundo ocidental. Se algo como a lógica do enriquecimento habitou muito bem a instituição de matriz judaico-cristã por tanto tempo, o acúmulo de riqueza no mundo contemporâneo do capitalismo tardio chega ao patamar de uma lei moral, o impulso que todos devem seguir, em prol de adquirir vantagens, alcançar de sucesso e riqueza pessoais.

Acumular bens, calcular atitudes em prol do benefício próprio, procurar cumprir apenas interesses individuais, gerir propriedades e conservá-las tornou-se tão irrefutavelmente algo naturalizado quanto é possível ver centenas de empresas e governos, dos mais variados graus de riqueza passarem por cima da vida das pessoas, da terra, do planeta, sem reflexão alguma sobre as consequências físicas de seus atos, apenas para acumular mais e ficarem cada vez mais ricas. Se antes a igreja europeia isolava a alma para fazê-la uma propriedade do pecador que deve se esforçar — e/ou comprar uma indulgência — para redimi-la, para então alcançar o paraíso distante e evitar as fogueiras da danação, hoje o corpo e alma propriedades dos indivíduos são vendidos por eles mesmos em troca de acumulação de bens — caso não tenham dado a sorte de nascer com um tipo de indulgência, nesse caso, uma herança — em meio a discursos ilusórios sobre meritocracia que difundem que o esforço próprio, provar-se digno através do trabalho seria o meio para alcançar o paraíso monetário.

David Kopenawa (2015, p. 406–420), defensor da floresta Yanomami, expõe, precisamente no capítulo dezenove de A queda do céu a paixão que os brancos têm pelas mercadorias. Ele diz de um desejo desmedido e avarento que os brancos têm de acumular objetos e o medo de perdê-los. Os brancos vivem guardando as mercadorias que produzem e adquirem em cofres, enfileiram e empilham em prateleiras, cômodos, casas, bancos e até bancos de dados e raramente oferece coisa alguma aos outros; quando o fazem é de má vontade e a contragosto. Para os Yanomami, os pensamentos dos brancos estão fixados nas mercadorias, eles dormem pensando nelas, envelhecem e não querem se desapegar delas, quando morrem deixam os filhos para lutar pelas heranças e continuar a acumular os objetos, até que estes mesmos objetos envelheçam isolados, bem guardados entre os muros e casas das cidades, que se organizam como colmeias, apenas para que uns possam acumular mais que outros.

Os Yanomami, no entanto, não têm a mente fixada em mercadorias. Davi Kopenawa logo apresenta que, curiosamente, o termo que eles dão às mercadorias dos brancos é o mesmo que eles dão aos enfeites com os quais se cobrem em festas e, sobretudo, aos ossos dos mortos, que eles cuidam com extremo cuidado até as festas funerárias reahu. A morte perpassa constantemente a compreensão Yanomami de objeto. O matihi, os ossos dos mortos, são tão importantes para os Yanomami quanto as mercadorias para nós brancos e colonizados por ideologias europeias.

Em primeiro lugar, David Kopenawa nos apresenta o caráter de duração de pessoas e de objetos. Pessoas são extremamente frágeis, sua vida é curta, facilmente interrompida, facilmente devorada por doenças, de modo que ser um sovina, um avarento, não é algo que valha a pena para alguém, e afetará negativamente a imagem que os outros terão desse entre os povos originários. Kopenawa apresenta algo que é embebido por uma lógica que nós mesmos nos lembramos, mas que não levamos a sério o suficiente, de que, quando morremos, deixamos tudo aqui. Os objetos são os primeiros que ficam para trás, indiferentes, mas a memória dos conhecidos é outra história.

Quando alguém morre entre os Yanomami, diz-se que seus pertences ficaram órfãos, e que eles carregam consigo os rastros de seu último detentor. Os objetos de alguém adquirem um caráter que lembra facilmente o dos próprios “ossos dos mortos”. Por isso, ao morrer, segundo Davi Kopenawa, os Yanomami destroem os ossos e também os pertences, o corpo e tudo relacionado à memória do antigo vivente. Fazem isso com pesar, mas também coragem de encarar e levar às últimas consequências a falta que alguém querido fará. Os mortos só poderão aparecer, após isso, nos sonhos e falas dos vivos.

Os objetos, para os Yanomami, diferente das pessoas, duram mais que elas, não morrem, mas envelhecem e se deterioram com o tempo. Assim, reafirma-se a necessidade de dar os pertences/objetos a quem desejá-los e precise deles e não deixá-los para mofar guardados ou para provocar sofrimento pela lembrança de alguém que partiu. Ao dá-los aos outros (frequentemente a pessoas de outras comunidades) e ser generosos, criam-se amizades, trilhas são abertas entre povoados, e caso não houverem trocas ou objetos dados por generosidade, criam-se inimizades facilmente. É através do ato de dar e trocar mercadorias que os Yanomami geram vínculos entre si e com outros povos, e é na generosidade que são bem falados, reconhecidos e que farão falta na morte, pois aqueles que recebem objetos reconhecem os rastros de seus antigos portadores. Ninguém sente falta ou lamenta a morte dos avarentos.

Assim os objetos são dedicados, cuidados e destruídos ou passados adiante aos povos amazônicos mais distantes. A cinza dos mortos passa os bons atributos deles para os vivos nas festas reahu e os objetos, antes de serem destruídos pelo tempo ou pelos funerais, têm suas próprias e únicas jornadas, animadas pelos desejos dos outros. Passam de mão em mão, atravessam as fronteiras formais dos países, ajudam a criar caminhos até os outros, ajuda a alguém ser querido e lembrado, e a fazer falta na morte.

O que é eterno, para Davi Kopenawa, é a floresta, cujas folhas até podem apodrecer, mas reaparecem belas e vigorosas continuamente, e os alimentos se renovam constantemente, por isso ela deve ser protegida. É graças à floresta que eles estão satisfeitos e não precisam fixar seus pensamentos nas ilusões do acúmulo de riqueza. A riqueza deles existe precisamente porque é compartilhada, não acumulada.

Enquanto isso, os brancos e associados estão presos nas tramas tolkenianas das mercadorias. Eles lembram o Smaug, de O Hobbit (Tolkien, 1937), um dragão tão poderoso quanto mesquinho, a dormir sobre o ouro, ele não voa nem vive, tudo em prol de proteger sua riqueza e, paranoico, não tarda a querer destruir os outros com receio de ser roubado. Ou ainda, lembram Sméagol de O Senhor dos Anéis (Tolkien, 1954), e seu pesado e frio anel de ouro, que faz a vida ser invisível, que enlouquece os homens e atrai aqueles que querem dominar e subjugar os outros, que os apaixonam e os fazem clamar “meu precioso” enquanto se deterioram em uma vida miserável e pobre de relações.

--

--