Barbie: um filme divertido e crítico (mas até que ponto?)

Larissa C. G. Oliveira
5 min readJul 24, 2023

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Barbie (2023), o novo filme dirigido pela Greta Gerwig, que conta com a atuação da icônica Margot Robbie como a protagonista Barbie Estereotipada — “o que se pensa quando alguém fala Barbie”, isto é, aquela famosa Barbie branca, loira e magricela —, Ryan Gosling como o principal Ken, que não deixa de procurar desesperadamente a atenção da Barbie, e inúmeros outros atores, entre os quais quero destacar Simu Liu, que foi ilustre e divertido em seu papel de um dos Ken coadjuvantes; é um filme surpreendente, engraçado e afiado em suas críticas sobre as questões de gênero e do machismo milenar que mulheres ocidentais e/ou influenciadas por esse contexto sofrem cotidianamente; e sobre a própria Mattel, a empresa fundadora da Barbie boneca e de dezenas de filmes temáticos sobre ela, cujo mais recente sem dúvidas será o mais lucrativo. Além disso, é digno de nota o quão espontâneo está sendo o público em relação ao filme, com pessoas e mais pessoas, desde a pré-estreia e para além dela, indo aos cinemas vestidas de rosa, fantasiadas, maquiadas, montando looks interessantes e brincando com o tema tanto quanto estilistas e atores o fizeram nos eventos de pré-lançamento. É um lançamento notável e toca sensivelmente na infância de gerações.

O filme apresenta, em resumo e sem spoilers, um panorama de relação entre dois mundos do início ao fim. Primeiro, o mundo dos objetos: as bonecas e a barbielândia onde as meninas podem sonhar ser mais do que conseguem na realidade, e o mundo real dos sujeitos: as pessoas mergulhadas em um mundo cheio de injustiças opressivas cotidianas de um capitalismo tardio em que tudo é entediante e extenuante, principalmente o trabalho, cujas meninas, que são apenas alguns dos vários corpos não hegemônicos politicamente, tem logo que deixar os sonhos que a barbielândia pode proporcionar a elas em prol de uma realidade cheia de barreiras onde não são ouvidas nem consideradas sujeitos, seja nos países mais ou menos opressivos no ranking de violência sexual e de gênero.

O que mais me surpreendeu e que serve de ponto alto do filme é como ele, para além de sua acidez franca, dá vida aos objetos, a como crianças desejam, consomem e utilizam as bonecas, como elas se veem espelhadas nelas, enxergam nelas seus sonhos, bem como o que costumam fazer quando se cansam e estão descartando-as pouco a pouco. É através da relação de gerações de meninas com as bonecas, e de como esses objetos são capazes de afetar, que Barbie gera uma poderosa identificação através de suas referências ao ato de brincar, facilmente reconhecíveis por quem teve uma dessas bonecas. O filme é perspicaz porque ele traz à luz nossas relações com objetos desde a infância, de forma crua e divertida, e aos poucos a boneca Barbie deixa de ser inerte e ganha, mais e mais, vida.

Por outro lado, a Barbie representa um espelho para o que se quis socialmente das mulheres e um refúgio infantil para os sonhos delas, seja qual for das opções, ambas cabem em caixinhas: a caixa em que querem encaixotar as mulheres para lhes barrar os horizontes, a caixa em que as bonecas são embaladas para gerar lucro, a caixa do mundo de plástico em que os sonhos encarnam, mas também são restringidos a desejos infantis e incompatíveis com a realidade. É por isso talvez, que o filme consegue ser tão emblemático sobre as questões que decide tratar, mesmo que sobre premissas simples.

Surpreendente é um termo que definiria bem o filme, mas também criativo, divertido e, sobretudo, crítico. É um filme muito consciente das questões sociais de gênero, e não poderíamos esperar menos conhecendo o trabalho da Greta Gerwig. Ela realiza aqui, para a felicidade de muitos, um cavalo de troia crítico para a indústria e o machismo que pegou tantos outros desprevenidos, desde empresários que tentaram surfar numa onda de lucros cor de rosa sem maior reflexão, aos ditos conservadores e preconceituosos, e aqueles para quem a carapuça serve: homens que se incomodam se alguém ousar dizer que são privilegiados. De fato é um filme “ousado”, que felizmente incomoda quem deve incomodar, mas não deveria receber uma onda crescente de críticas por dizer apenas fatos: os homens brancos estão em uma posição de privilégio adquirida por meio de violência e mesquinhez milenares e que também é uma espinha dorsal dos princípios da branquitude de raiz europeia.

Todavia, não é porque é um filme crítico e que ousa apontar a realidade para todos, inclusive aos conservadores que vivem no mundo encantado do preconceito, que é um filme subversivo. Ele incomoda por ser franco — assim como Nimona (2023, Netflix) e Red: Crescer é uma fera (2022, Disney), incomodaram e foram retirados de catálogos infantis de streaming — , e não importa o quão lucrativa seja a mensagem, embebida de consciência social, no caso das animações citadas isso custou a censura bem solicitada por grupos específicos de pessoas, no caso da Barbie, com um lucro crescente que tenta ignorar as mensagens do filme. A Mattel vai aceitar com extrema felicidade os arranhões críticos que o filme lhe der, afinal, ela mesma o quis, a empresa bem sabia onde estava pisando ao contratar a diretora e os roteiristas, e a auto-crítica sarcástica e o capitalismo, como mostra Mark Fisher em 2009, em Realismo Capitalista, estão longe de não andarem juntas, e já há notícias de futuras bonecas à venda nas lojas baseadas em muitas das Barbies representadas no filme. Através da identificação que o filme monta, ele coloca a Barbie como aquilo que inspirou e segue inspirando mulheres a lutar ao passo que faz uma propaganda de si mesma enquanto o produto de consumo certo para isso, o lucro não tem fim.

É um filme, portanto, que não arrisca em ser subversivo sobre o que fazer então com as questões que aborda, suas soluções tanto na ficção quanto fora dela não são exatamente inovadoras — embora estratégia, uma das mencionadas soluções, possa ser inovadora para um pessoal aí da cof cof esquerda cof cof — , elas são, por exemplo o lucro socialmente consciente (apesar das boas chances de boicote da direita sobre produtos socialmente conscientes e de pautas identitárias se perderem em liberalismos identitários). Seja como for, ponto para uma psicoeducação de gênero e suas questões legítimas nesse filme, que é estratégico o suficiente para surfar nas propagandas e promoções que as pessoas e empresas fazem, mesmo que não saibam exatamente do seu teor crítico. Por outro lado, ponto para o capitalismo, já que o filme não pretende ir muito longe dele.

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