Ghost in the shell: casca metamorfa, máquinas canibais

Larissa C. G. Oliveira
6 min readJan 9, 2024

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A fabricação de um ciborgue. Uma das primeiras cenas do filme Ghost in the Shell (1995).

Há algo canibal em “Ghost in the Shell” (1995), filme baseado no mangá de Shirow Masamune e dirigido por Mamoru Oshii. Em um cenário futurista e cyberpunk, penetrado por uma linguagem computacional e sua virtualidade cada vez mais inevitável tanto na vida cotidiana, quanto nos corpos os quais atravessa, o filme chama a atenção entre as obras produzidas do gênero para a questão das rápidas evoluções tecnológicas, o utilitarismo como guia das ações humanas, bem como as consequências de um sistema capitalista de produção que visa, cegamente, a expansão sem limites.

Logo nos primeiros momentos do filme vemos o nascimento lento de Motoko Kusanagi, a protagonista, mas não enquanto um recém-nascido de um ventre viscoso. Pelo contrário, seu corpo emerge de uma linha de montagem semelhante à de uma indústria de de carros. Em posição fetal ela desliza por essa linha de produção, que aparece como um eco de uma gestação verdadeira, mas longe de qualquer ventre materno, seu corpo mecânico monta-se praticamente sozinho, sem nenhum contato, nenhum tato de corpos humanos, guiado apenas por comandos distantes em telas de computadores. Assim vemos ela flutuar, enquanto ganha sua pele sintética, que faz seu corpo ciborgue, um híbrido de metal, fluidos artificiais e um cérebro humano sem memórias, finalizar-se no processo de sua produção. Como produto final, e com pouco mais que seu sistema nervoso original, o corpo da protagonista e o de tantos outros, em maior ou menor grau, foi canibalizado e gestado pela máquina.

Apesar de futurista, a cena é acompanhada por uma música que segue padrões da cultura japonesa de suas passadas eras feudais. Talvez em uma alusão simbólica, um ponto de encontro entre o passado e o futuro nessa nova origem, a trilha sonora parece fazer encontrar, em sua composição tradicional que evoca um ritual, repleta de tambores, sinos e um coro, a humanidade intrínseca à criação cultural, ao mesmo tempo pulsante e dormente dentro dessa nova casca tecnológica, racionalista e fria.

O corpo ciborgue de Motoko é um lugar de tensões para as separações entre corpo e espírito, natureza e cultura . A mente, independente do corpo, ainda assim conectada à rede virtual está vulnerável às invasões de hackers e sua influência psíquica em meio a jogos de interesse, que se aproveitam dessa possível vantagem para transformar pessoas em recursos para lucro e jogos políticos. As memórias se tornam frágeis, influenciáveis e substituíveis de uma hora para outra por mentiras — o que parece uma prévia para tudo aquilo que se tornaram as fake news mais de uma década depois do lançamento do filme — e não há um solo comum de significações culturais. O hacker americano, antagonista boa parte do filme que vagueia pela virtualidade e evoca afetos incontroláveis nas pessoas que manipula, aparece como aquilo que é estranho, talvez até inconsciente, pois fora do controle e dos interesses das elites políticas, mas ele não cessa de mostrar como a racionalidade humana tomba perante sua pretensa genialidade.

O novo corpo em que Motoko Kusanagi renasceu é eterno, durável e atualizável. Ele é feito para superar as limitações humanas, isto é, as doenças, a velhice e a morte. O filme nos faz mergulhar cuidadosamente na realidade da protagonista e sua relação com seu próprio corpo. É um corpo bastante caro, forte, ágil e sempre pronto e treinado para a próxima intercorrência policial. Um corpo altamente especializado e produtivo à lógica e instituições em que opera. Entretanto, é um corpo sem desejo.

Motoko aparece por vezes nua, inteiramente capaz de tornar-se invisível em meio às luzes da cidade, inteiramente instrumento de seu ofício. É um corpo cru, não sexualizado, disciplinado, racional e instrumentalizado, em que apenas a utilidade é enxergada. Uma casca habitada por um eco contemplativo e apático, enterrado em sua identidade fixa de uma ferramenta ciborgue a serviço da polícia do estado a que deve pagar com todo o seu ser e que, por isso mesmo, não cessa de mostrar que o que habita o utilitarismo é um vazio incessante.

Nos momentos dedicados a mostrar a cidade, acompanhamos através do que Motoko Kusanagi vê, contemplativa, cenários com os quais parece difícil se conectar realmente. Águas poluídas e repletas de lixo, propagandas de marketing saturando as ruas de uma cidade extremamente populosa. Há prédios gigantescos em construção, mas já parecem tão enferrujados e em ruínas quanto os demais. A própria cidade parece uma casca ecoando interesses humanos insistentes, sem sentido e cegos a tudo ao redor, uma cidade com a promessa de eterna expansão, de aperfeiçoamento e produção, que mostra, cada vez mais, ter gerado um mundo insustentável e cada vez mais difícil de habitar, onde tudo que está sendo construído já parece enferrujado e entediante.

Como fruto dessa separação entre mente e corpo, espírito e matéria, cultura e natureza, em que esses segundos elementos foram inferiorizados em relação aos primeiros e instrumentalizados para fins de exploração, tudo o que se conseguiu atingir foi a falta de perspectiva de futuro, em que não há alternativas senão viver em ruínas.

Perante superioridade da racionalidade, agora vacilante, o desejo e os afetos fazem emergir das profundezas, sob memórias falsas ou não, sua força. E é sobre isso que se trata a virada mais valiosa do filme, ao mesmo extremamente elementar e que evoca a reprodução da vida e o caminho das espécies ao longo de centenas de milhares de anos.

O grande salto da humanidade do filme, algo que faria a máquina-humana ser capaz de romper com sua separação auto-forjada em relação a natureza, era ser capaz de uma relação de troca com o outro, não uma troca de bens, não uma negociação comercial, não uma troca de palavras que refletem apenas individualidades e egos, mas uma troca capaz de fazer relação em abertura com o não semelhante, com o estranho.

Não se trata de uma relação de aprimoramento ou lucro em busca de uma eternidade ilusória, mas de uma dissolução, de abrir mão de identidades rígidas para que algo novo surja, novos corpos surjam. Uma reconexão com o corpo implica a relação com o outro. Para produzir algo novo, é preciso abrir mão de si, de uma noção de um Eu enquanto propriedade inviolável, das garantias da posse — que herdamos de teóricos liberais desesperados para que não taxassem suas fortunas — , a começar da própria identidade, e ser capaz de associar-se a um outro, sem medo dos abismos.

“Salto no vazio”, Yves Klein, 1960; não deixou de lembrar-me a atitude final da protagonista.

Mas por que essa imagem me lembra a atitude final da protagonista? Inicialmente este texto ficou incompleto, mas graças a um lançamento bem recente do mesmo Safatle, eu percebi, que, segundo ele, a queda traz algo do desejo de Motoko, em que o que estava em jogo nesse movimento era que, segundo Safatle (2024, p. 17):

Nessas horas, faz toda a diferença saber como cair, como cair de outra forma. Não com a expectativa de restaurar o sentimento de estar intacto. [Mas] cair perguntando-se o que me levou a cair, o que quis de fato realizar, mesmo que de maneira desesperada.

As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos, ritmos distintos, desenvolvimentos idem. Corpos que nos atravessam. Há uma relação fundamental entre desejo e queda, mas não devido à ladainha cristã da culpa por desejar o que não se deveria desejar. A melhor maneira de nos livrarmos dessa teologia travestida de psicologia moral é ressignificando todos os seus termos. O desejo procura a queda porque ela é o impulso que temos para sermos diferentes de nós mesmos, diferentes do que fomos até agora. Talvez seja por isso que entramos em relação.

O desejo de Motoko Kusanagi, que pôs fim a sua invulnerabilidade e eternidade de máquina, que dissolveu todo o processo evolutivo e adaptativo e racional em que estava inserida, cheio de consciência e cálculo, que a transformou em um primeiro momento em uma propriedade de si e da organização policial, e, portanto, um produto, era um desejo que a pôs em queda: um desejo de relação, de ser diferente de tudo isso. Está aí um tanto da genialidade do filme, que se apresenta no início de todo um movimento estético cyberpunk, e já aponta o que nele quer se denunciar e realizar de fato: uma outra forma de vida.

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