Palavras são vento: A linguagem em As Crônicas de Gelo e Fogo

Larissa C. G. Oliveira
7 min readNov 8, 2021

--

“Silêncio”, navio liderado por Euron Greyjoy.

Recentemente adentrei a reta final do livro A Dança dos Dragões (2011), o último até então lançado das Crônicas de Gelo e Fogo (1996–2011), obra do renomado George R. R. Martin. E a repetição da frase “Palavras são vento” veio me chamando a atenção. Ela aparece em capítulos de diferentes personagens, como Daenerys Targaryen, Tyrion Lannister, Theon Greyjoy, Davos Seaworth, dentre outros; seja em seus pensamentos ou nas palavras que proferem e ouvem.

Por aparecer nos mais distintos cenários e situações, essa repetição mostra-se como um elemento de certa centralidade, como um mecanismo de discurso. Uma lógica que ressurge repetidas vezes como uma mensagem que interconecta diferentes momentos do livro.

Sob o signo dos ventos e de sua correlação com a linguagem; “Palavras são vento” denota, nos contextos em que surge, que as palavras não valem tanto quanto parecem. Pois se são como os ventos, elas não conferem estabilidade ou segurança alguma. Pelo contrário, são voláteis e fugidias. Parecem sumir no mesmo instante que aparecem. Nós não as tocamos, tal como o ar, — ar que atravessa nossos corpos — mas elas certamente nos tocam.

Não se sabe para onde irão as palavras e os ventos, e certamente elas não permanecem no mesmo lugar, imutáveis. Foram feitas para transitar, para aquecer e esfriar segundo o que encontram em seu caminho. As palavras animam a vida e as canções, carregam desejos, fazem realizar impossíveis, ajudam a criar laços, a ferir e a curar.

Entretanto, quando tal frase aparece nos livros, o faz de maneira contestatória e ambígua. De modo que esvaziam promessas, discursos e identidades. Como se dissessem que não é realmente possível “dar a sua palavra”, garantir suas promessas ou o que alguém ou tal Casa ou família nobre representam. Pois as palavras e as pessoas mudam e o que foi dito é facilmente esquecido, sobretudo diante da violência. Palavras são apenas palavras, nesse sentido. Apesar de significativas, elas não deveriam determinar realmente o mundo. Afinal elas são apenas som, ar passando por mecanismos de cordas vocais.

É no som que as palavras encontram seu fundo de estranheza e arbitrariedade. Ao nos aproximarmos da sonoridade, em sua crueza e nos desencontros que uma homonímia pode fornecer, encontramos um dos possíveis fundos de ‘não-sentido’. Afinal, damos de cara com um amontoado de sons agrupados por regras, sons que poderiam ser infinitos outros, ordenados de infinitas outras maneiras. Eis sua arbitrariedade sutil, aquela que encontramos quando nos deparamos com outra língua, com outra ordenação da comunicação.

Apesar disso, e talvez seja esse o maior movimento da obra de Martin, esses ‘ventos’ são capazes de criar verdadeiras tempestades, que arrasam a vida de milhares de pessoas diante de jogos de interesse político e violência. Se elas são capazes de tanto é porque há fé nelas, nas identidades e discursos que elas sustentam.

O maior esforço de Martin, ao repetir inúmeras vezes que palavras são vento, é fazer vacilar a confiança que é depositada nos discursos e identidades que hieriarquizam o mundo, que dão poder às suas instituições. Não somente isso, como também que dão legitimidade aos nobres, que os fazem crer cegamente que são “leões” ou “dragões” e não simplesmente pessoas, tanto quanto os camponeses que são seus subordinados.

Enquanto muitos personagens nas Crônicas de Gelo e Fogo se desdobram em encontros e desencontros com suas identidades — há um encontro quando Cersei, uma Lannister, toca um leão sem medo e este a responde bem, isso se dá, para ela, porque ela também tem algo de leoa em si; há um desencontro quando um homem que considera a honra em cada ação, Ned Stark é morto como um bandido desonrado; quando um cavaleiro, Jaime, perde sua mão, que concentra em si o foco de toda sua identidade, e precisa encontrar um novo rumo para si, entre outros — os discursos e objetos que as sustentam. Euron Greyjoy, por outro lado, parece se destacar e envolver outra dinâmica.

A tensão a respeito dele é construída antes mesmo de sua aparição e desenvolvimento propriamente. Sua construção de personagem começa no que os outros dizem dele; isto é, que é terrível, sinistro e carismático.

Euron Greyjoy, por Bella Bergolts

“Talvez possamos voar. Todos nós. Como saber, a menos que saltemos de um torre alta qualquer? Não há homem que realmente saiba o que pode fazer a menos que se atreva a fazer.” — Euron para seu irmão Victarion Greyjoy.

Euron é o herdeiro principal de sua casa atualmente, esta que reina sobre as Ilhas de Ferro e do Norte, na porção oeste de Westeros. Com uma estética corsária, seu povo tem uma cultura que valoriza a virilidade e a violência. Euron Greyjoy, apelidado como “crow’s eye”/“olho de corvo” ele é descrito com um olho azul “sorridente”, que corresponde à sua personalidade simpática e carismática. Ao passo que seu outro olho, escondido por uma venda, é vermelho e sombrio, tanto quanto essa parte de si, que geralmente não é aparente à primeira vista.

Ao adentrarmos sua história, logo percebemos que Euron é cruel e inteligente. Ele blasfema por diversão, quebra os tabus de todos os povos que encontra. Ele se cativa do fato que nenhum deus, nenhuma lei ou homem o puniu. Euron maltrata seus irmãos física e psicologicamente, e os manipula em sua raiva e medo resultantes dos traumas. O mesmo se repete com as mulheres que ele seduz, com seu povo, sua tripulação e qualquer um que lhe interesse. Euron é, em resumo, um personagem que se importa somente consigo mesmo, um excêntrico.

“Sem deus? Ora, Aeron, eu sou o homem com mais deuses que alguma vez içou uma vela! Você serve a um deus, Cabelo-Molhado, mas eu servi a dez mil. De Ib a Asshai, quando os homens veem minhas velas, rezam.” — Euron para seu irmão, Aeron Greyjoy.

É tão carismático quanto perigoso, ele se sustenta em seu bom nascimento como herdeiro possível da Casa Greyjoy. Mas também usa de suas lábia, postura e persuasão para conseguir o que quer, seja uma mulher, seja um reino.

Ardil e astuto, ele conquistou seu povo com palavras, com as hierarquias das regras instituídas pela nobreza e com violência. Euron é um fruto perfeito do poder das palavras, das instituições e os discursos que as mantém. Ele não é visto lutando ou usando alguma magia, mas é temido profundamente por todos aqueles que mais o conhecem.

Seu navio se chama “Silêncio” e de fato é isso que ele espalha através de suas navegações, suas torturas e seus projetos de poder. Sua tripulação, cativos e até mesmo sua esposa grávida tiveram suas línguas cortadas pelo Greyjoy. O silêncio paira ao redor dele como um curioso desejo.

Silêncio que aparece como demanda e que ameaça a proposta que o título da série de livros trás em A Song of Ice and Fire (A Canção de Gelo e Fogo, na tradução literal). Se a obra, que carrega em si o porte desse universo, é referenciado como uma canção, é porque ele porta algo de seu sentido. Canção essa que, para Martin, refere-se à vida e à memória. Talvez seja ela quem está sendo realmente ameaçada.

Silêncio é o que não é dito do que emana dos desejos de Euron, de suas palavras e ações. Tal como o Dr. Harber, um clínico manipulador, que não cansa de elaborar discursos, na obra A Curva do Sonho, de Ursula Le Guin, oferece verdadeiramente vazio destrutivo ao mundo quando se vê em posse do poder de alterá-lo com seus sonhos, que tomou do protagonista; Euron oferece silêncio e morte.

Suas palavras emanam desejo, são fáceis de criar identificação nos homens, de refletir suas fantasias e ambições, mas no fim é apenas o silêncio que ele distribui. O silenciamento das palavras, vontades e autonomia dos outros, sua subordinação, que concretiza a impossibilidade de formação de qualquer laço, em nome apenas de suas ambições pessoais e glorificação de si.

Euron, a fantasia máxima de êxito dos discursos e sistemas que ordenam esse mundo, acaba sendo o símbolo do que não é dito no exercício dessas formas de poder: elas não são capazes de ouvir, sustentam-se na ganância incessante que subordina a vida e destroi possibilidades de viver.

A política, distanciada da ética, encontra uma de suas formas na guerra, não muito diferente daquilo que o corsário representa, e uma temática tratada com crueza e certa perspicácia política pelo autor. E a guerra, na obra de Martin, não se distancia do que enxergo em outra obra, Dororo (2019); a animação japonesa mostra a guerra como um foco de violência sem censura, que deixa um rastro de distruição e que é a expressão do desperdício de recursos e de vidas, que só faz sentido aos excêntricos que as comandam.

Se a guerra é a continuação da política por outros meios*, Martin deixa claro (numa associoação que já foi feita antes), que ela só nutre os corvos que se alimentam dos corpos — algo mais claro no livro O festim dos corvos, quando é possível ver as consequências da guerra que se espalhou em Westeros. Do fim de uma batalha, corpos amontoados e desmembrados que alimentam os corvos, resta apenas o silêncio.

Inspirações e referências:

* Frase conhecida, de Carl Von Clausewitz (1790–1831), estrategista de guerra;

A última parte deste ensaio tem forte inspiração no vídeo “Euron Greyjoy’s apocalypse in The Game of Thrones books”. É um vídeo investigativo e cheio de teorias sobre as aparições e o desenvolvimento do personagem ao longo dos livros. Ótimo para compreender melhor quem é Euron Greyjoy.

--

--