Pobres relações, pobres criaturas

Larissa C. G. Oliveira
5 min readFeb 16, 2024

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Pobres criaturas (2024) é um filme que me puxou para a sala de cinema por sua premissa: uma mulher grávida tira a própria vida e um cientista que lembra o Frankenstein, interpretado pelo maravilhoso Willem Dafoe, resolve resgatar o corpo e implantar o cérebro da criança no corpo da mãe.

Esteticamente falando o filme é belo, tem cenários exóticos, figurinos deslumbrantes e uma atmosfera de fantasia muito bem vinda. Em alguns momentos, no entanto, senti estar passeando por pastas e mais pastas do pinterest, com muitas ideias sendo jogadas rápido demais na tela e pouco realmente trabalhadas numa mistura que me lembrou, talvez até demais, os filmes da A24 e os filmes do diretor Robert Eggers, responsável por A bruxa (2015), O Farol (2019) e O homem do norte (2022), estes três são filmes com uma identidade própria, estruturados por atos com letras bem grandes na tela, ou imagens específicas, anunciando o título ou o início de cada parte, algo que aparece aqui em Poor things. Sobre essa sensação de vagar pelo pinterest de que eu falei agora, diria que algo similar aconteceu com o roteiro, com temas sendo jogados na cara para depois serem deixados de lado.

Problemas do filme

Os problemas do filme estão principalmente no que ele tinha o potencial de explorar e gerar tensão, mas escolheu não fazer, coisas que não estão explícitas, ditas, ou que foram pouco tratadas.

Há algo de horror em alguém ser fundido no corpo da própria mãe. Foi isso que me levou ao cinema. Pois isso geraria uma tensão a ser explorada: quais os limites do corpo e da alma, o que significaria uma junção de mãe e filho, ou ser sua própria mãe e filha ao mesmo tempo?

[Alerta de spoiler de conteúdo abaixo, vague com certa consideração disso]

Entretanto, tudo isso fica de lado e ao invés de gerar muito choque — se o faz é por breves momentos — , é tratado com um imenso “ok” da parte de praticamente todos os personagens envolvidos.

As transições de fases do filme, feito por telas quase como gifs anunciando o título da próxima etapa da aventura misturam elementos do corpo humano (hemoglobinas, olhos, mãos, entre outros), cenários de água e do mar referentes ao suicídio da mãe, e a Bella Baxter, protagonista interpretada pela Emma Stone, no meio disso tudo. Esses momentos passam rápido demais, e são os únicos que poderiam talvez fazer menção a um encontro entre mãe, filha e suicídio. Até comentei em conversas que se fosse eu a fazer o roteiro, aproveitando a premissa de ser um filme “estranho”, usufruiria dessas breves cenas como se fossem sonhos, sem palavras, inconscientemente tratando dessas temáticas entre cada uma das partes do filme e trazendo-o à superfície. No entanto, o filme não explora esse aspecto de monstruosidade, se ele quer ser estranho demais, e até consegue, é mais em virtude dos elementos visuais do que do roteiro.

Uma “vibe” meio branquitude

Houve outro momento com algo de não-dito, o que não seria surpreendente por me lembrar algo de uma culpa branca e branquitude enquanto eu assistia. Trata-se das únicas cenas na África, numa realidade em que a Alexandria ainda existe, onde escravizados aparecem desumanizados e caricatos em brevíssimos momentos enquanto acompanhamos os protagonistas assistirem eles a uma distância segura, representando o que há de melhor de culpa branca: um choro empático pelas vítimas, acompanhado de comentários de um personagem, anunciado como cínico, sobre como a humanidade é ruim e como aquelas pessoas exploradas facilmente fariam o mesmo em posição inversa, então não há o que fazer afinal.

Os protagonistas, evidentemente de classe alta, que usufruem daquela exploração, não se enxergam tão claramente enquanto responsáveis históricos, apenas veem que precisam defender sua posição e que doar aos pobres seria um ato bom o suficiente. Algo que é até recorrente em produções que tratam dos “males da humanidade”, mas pouco localizam quem foram os responsáveis históricos por muitas das feridas que habitam tais mundos.

Embora a protagonista branca vá contra acreditar que a humanidade seja ruim, confrontando a visão do homem negro cínico que apresenta a escravidão como algo irremediável — ele age e pensa como se tivessem jogado água sanitária nele e como se não houvesse tensões entre negros e brancos na Europa histórica, algo que se repete com outros personagens negros no filme, que ao invés de, com seu potencial subversivo, gerar uma distinta tensão sobre essas questões, parecem mais agir, pensar e recorrer a “soluções” presentes no pensamento europeu para seus problemas. Algo que não é impossível a um personagem de ser, claro, entretanto, a neutralidade excessiva nesse caso me incomodou — ao final das contas o filme não dá mais que soluções genéricas aos moldes do pensamento filosófico e científico ocidentais, e pouco desenvolvimento para as personagens até o final do filme, deixando essas questões de lado em prol de outras coisas...

Um filme feminista?

Um artigo aqui do medium que pensou essa questão perfeitamente foi “Poor Things and Buffy Feminism”, que deixo aqui para quem tiver curiosidade. Mas apresento sobre isso um breve resumo: muito do filme se dedica ao sexo e à sexualidade, em geral com cenas protagonizadas pela Emma Stone e homens que ou abusam dela ou homens com os quais ela não quer transar e não tem muita escolha. Para não mencionar que metade do filme é basicamente homens transando com uma criança no corpo de uma mulher adulta, aspecto nem perto de ser tensionado de qualquer forma, algo pra além disso me gerou incômodo.

A princípio pensei que fosse mais um episódio de certa resistência minha com cenas de sexo (algo que estou mudando, afinal sexo é natural), mas apesar de a sexualidade ser vasta e ter formas como apresentadas no filme, elas não me pareceram mais interessantes ou agregadoras à própria história, pois sempre pareciam ser excessivamnte mostradas a partir da perspectiva dos homens com quem ela estava se relacionando, e quase nunca focava nos objetos de interesse sexual dela ou do que o sexo estava representando para ela naqueles momentos.

Com tantas possibilidades de utilizar recursos visuais fantasiosos e estranhos para mostrar essa exploração do sexo e do gozo pela Bella, e até mesmo de um gozo do corpo feminino que raramente aparece cru por aí, eles escolheram algo meio pornô comum para essa tarefa. Assim, era uma perspectiva masculina demais e já muito difundida nas produções audiovisuais para uma história que deveria ser sobre a exploração do mundo e do sexo a partir da Bella Baxter.

Afinal, o filme põe em questão o que seria preciso para a Bella ser livre nesse mundo que incentivou a mãe a ceifar à própria vida, e sua jornada indica um caminho que vai de trabalhadora do sexo a uma estudante universitária, cuja vitória é ser um tanto quanto parecida com o pai adotivo dela ao final da história. O grande desenvolvimento da Bella é basicamente cognitivo. É um filme que tenta falar de liberdade e dominação, e até consegue falar um pouco disso quanto aos relacionamentos abusivos dela com aqueles homens caricatos, mas dá a quem assiste as mesmas relações aos moldes ocidentais de sempre.

Esse texto foi bastante sobre o que eu senti ao assistir o filme e fiquei matutando depois. Assim sendo, pode haver algo que eu não considerei ou percebi ao longo do filme. O leitor é livre para dar a própria opinião, para concordar ou discordar, e, caso seja do agrado, deixar que eu descubra mais sobre nos comentários.

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