O Batman: caminhos da subversão?

Larissa C. G. Oliveira
5 min readApr 5, 2022

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Batman em desfoque, diante de Gotham (“The Batman”, 2022).

O filme O Batman (2022) é talvez o mais interessante entre todas as representações anteriores quando se trata de mostrar uma versão sóbria do Batman e sua contraparte identitária o Bruce Wayne — a interpretação de Robert Pattinson é surpreendente e talvez a que melhor se destaca entre os atores que já cuidaram desse papel. Não temos aqui um Bruce Wayne filantropo e carismático como o de Christian Bale (Batman Begins, 2005), mas um mergulhado em suas questões, seus traumas e no que ele representa enquanto vigilante de Gotham. Esta que aparece no filme quase que por inteiro, a partir do contraste das vistas panorâmicas na “copa” dos prédios, e das entranhas soturnas das ruas, seu tráfego indiferente sob a chuva ou céu crepuscular. Sempre disposta a mostrar os lados mais extremos da cidade, de riqueza e de miséria.

Vemos, ao decorrer do filme, o Bruce se abrir a outros possíveis de sua representação. O filme se desenrola com a descoberta de que ele pode ser algo para além de “a vingança”, bem como “a escuridão” e o terror que isso inflige em bandidos comuns na cidade. Uma reflexão que foi impulsionada ainda mais pelo principal antagonista do filme, o Charada (Paul Dano).

Sustentado por uma relação que ele mantém com a figura do Batman, o Charada prepara uma série de desafios, com direito a assassinatos e códigos elaborados para chamar a atenção da cidade para sua mensagem. Um de seus objetivos é fazer Bruce seguir a linha que ele quer para descobrir a resposta para a charada: quais são os maiores responsáveis por Gotham ser uma cidade decadente e em eternas ruínas?

O Charada é uma figura misteriosa, que mobiliza redes sociais e protestos, mas, atrás de sua máscara é apenas um indivíduo isolado e que não sabe exatamente como politizar as questões que o atingiram. Ele exprime em seus desejos a agressividade de uma raiva legítima contra um sistema sociopolítico que o deixou desamparado em primeiro lugar. Parece que isso também está vazando em suas mensagens e interrogações. Ele quer ser ouvido através da violência e do anonimato.

Em seu íntimo ele se pergunta porque um órfão como Bruce Wayne, que nunca passou necessidades financeiras, teve atenção da sociedade (ou, na verdade, de seus meios midiáticos) enquanto ele e tantos outros sujeitos cheios de tragédias não conseguem sequer ser vistos. E é válido lembrar que antes a própria mídia é de certa forma confundida pelo Charada como uma estrutura de suporte e não só de visibilidade. Apesar de esta ser capaz de mobilizar pessoas em alguma direção, está longe de ser a expressão de uma sociedade em sua potência política e de solidariedade mesma.

Ao longo do filme seus direcionamentos apontam para os políticos corruptos e sem caráter, que minam qualquer fé que até o Bruce possa ter no sistema e em seus antepassados próximos. Bem, é o que o Charada queria. O filme é tomado por outro antagonista, que se liga ao Batman através do arco da Selina Kyle(Zoë Kravitz). Desta vez é um político da elite, extremamente corrupto e privilegiado, e que concentra em si a imagem de um coração dessa corrupção a ser eliminado. Parece que outra direção é tomada, esquecer o passado dos atos “infelizes” dos políticos e antepassados e olhar em direção ao futuro.

Nesse ponto quero citar um vídeo a respeito do assunto (“Batman cidadão de bem”), do canal Quadro Branco que desvela algo interessante. Em seu arco final, a proposta de eliminação dos corruptos para cura do sistema parece ser vigente. Como é dito no material, ao final do filme o próprio sistema não é mais colocado completamente em questão, muito menos as elites que ele sustenta.

Em meio a tragédia que o próprio Charada proporciona a Gotham, sua pretensa vitória final, a grande proposta de “mudança”, representada pela prefeita, é que se recupere a fé nessas instituições e remende-as através da eleição de políticos honestos (mesmo que ela própria não tenha provado que é digna de confiança). A mesma personagem que acha que sugerir a um milionário (Wayne) doar para caridade é uma atitude política, que ajudará em algo em meio a um sistema em que essas mesmas elites criam as condições para que tudo permaneça como está.

Se o Charada chora, mesmo com o sucesso catastrófico de seus planos, é porque ele ruiu as estruturas erradas. Ao contrário do que esperava, ele acabou fortalecendo a crença naqueles que ele combatia. Pois apesar da irremediável ruína de Gotham (uma ruína a mais não faria diferença), uma atitude de solidariedade se mostra como algo realmente novo e revolucionário.

Apesar disso, ainda é uma solidariedade embebida de mesmices políticas norte americanas, com cenas de campanhas eleitorais, e essas expressões de ajuda sendo exibidas na mídia lado a lado. São atitudes feitas mais para revitalizar um sistema vigente que pra transformar algo efetivamente.

Não, a subversão política não é uma atitude de violência gratuita de uma pessoa contra outras, nem as atitudes bonitas e morais de bem abastados com menos favorecidos. E um ou outro vigilante com músculos e dinheiro o suficiente para lidar com a violência, está longe de ser um remédio para a situação que o criou. Ao menos o filme mostra que essas atitudes e agentes não funcionam mais como antigamente.

Sobretudo quando o que se acredita é que as instituições criadas para proteger as elites devam permanecer como estar e só se mudar a cara dos agentes. Um olhar ao futuro que mais se esforça pra repetir o passado, como se não fosse possível conceber nenhuma outra alternativa. E se essas forem nossas únicas opções de potência de ação então só mostra o quanto nossa imaginação anda limitada.

A subversão é uma chave, que apesar de individual, não pode nem deve ser unificada em um único corpo. Ela surge da compreensão de um potencial político, um sujeito que percebe sua relação com a dimensão política de novas formas e aflora sua capacidade de agir sobre elas e transformá-las, ou um “sujeito coletivo”*.

Se não existe política sem relação humana, sem linguagem e discursos, é porque não podemos ignorar o potencial dela de ser mais, de gerar coisas novas, incluindo formas de relação, criativamente.

Por que não podemos sequer conceber outra realidade, a não ser uma cada vez pior, como possível? Estamos chegando ao ponto de aceitar as distopias como futuro possível, em nome de uma pretensa racionalidade. Mas nos esquecemos que o que temos hoje já foi utópico um dia, já foi sonhado e idealizado de alguma forma.

*Sujeito Coletivo não é um termo que veio à toa aqui. Embora eu esteja trabalhando no conceito ao meu modo, esse contexto surgiu de reflexões da leitura do livro “Realismo Capitalista” de Mark Fisher, edição de 2021 pela editora ‘Autonomia Literária’.

Também há um texto meu nesse blog que talvez possa dar mais insights sobre o caráter volátil e potencial dos discursos, a saber: Palavras são vento: A linguagem em as Crônicas de Gelo e Fogo.

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